Todas as manhãs quando o relógio marcava seis horas, um pássaro cantava na minha janela. De acordo com meu humor ou estado de espírito, que no fundo é a mesma coisa, achava lindo ou irritante. Aos domingos quando podia dormir até um pouco mais tarde, aquele bicho inconveniente insistia em me despertar, todos os dias, às seis horas.
Naquela manhã, havia acordado várias vezes, abri os olhos e vi o quarto ainda escuro. E, por incrível que pudesse parecer, esperei pelo canto daquele pássaro. Ele não cantou...
Acordei uma hora mais tarde, imaginei que o pássaro provavelmente estivesse morto.
Fui para o chuveiro e notei que as gotículas d’água desceram e ao tocarem meu corpo pareciam brilhar. Percebi então, que até aquele momento, eu não havia ouvido nenhum ruído, nem o ranger da cama ao levantar, nem o som da água batendo no chão. Enxuguei meu corpo, me vesti, peguei minha bolsa, uma maçã e as chaves do carro.
Desativei o alarme que não emitiu som algum, apenas o apagar do display arredondado. Sentei no banco do motorista, liguei o rádio e lá estava eu, completamente surda. No caminho, até pensei em ir ao hospital, mas resolvi seguir o trajeto para o trabalho. Ao chegar à redação me dei conta de que as pessoas não levantam o olhar para desejar bom dia como força do hábito, aquilo que chamam de educação. Ninguém olha nos olhos porque não se importam, porque eu deveria me importar se não as posso ouvir?
Não era preciso ouvir os murmurinhos vindos da copa, as piadinhas nojentas daquele velho tarado que não se enxerga, as cantadas idiotas do cara sem noção, as reclamações das colegas mal amadas, os deleites das noites quentes do chefe com a namorada nova, tão pouco o festival de toques torturantes dos celulares... Todo o inferno havia ido embora.
Durante uma semana fingi que ouvia as razões que levavam Cláudia às lágrimas, quando os lábios dela paravam de mexer eu disse:
_ Sinto muito não ter nenhuma resposta para seus problemas, mas se precisar estarei aqui.
Ela sorriu, enxugou as lágrimas, verificou a maquiagem, se recompôs e enfim, foi cuidar de seus afazeres, e deixou que eu cuidasse dos meus.
Aquela semana foi uma das melhores da minha vida, afinal, sempre fui muito sozinha e as conveniências sociais me fizeram esquecer de minha própria existência... Me realizei profissionalmente naquele período, nada me desconcentrava...
Observava as pessoas sem que percebessem ou se incomodassem, senti como se fossem minhas cobaias.
Hoje quando acordei, estava presa pelas ferragens do meu carro novo, que agora não passa de metal retorcido...voltei a ouvir tudo, as vozes dos paramédicos, os gritos dos curiosos, a passagem da repórter que fazia cobertura ao vivo do acidente, vi quando ela arrumou o cabelo e conferiu se a pele não estava brilhosa demais. Ela disse:
_ De acordo com informações, o caminhão que vinha na contramão buzinou, mas não foi possível impedir que colidisse com o carro de placa, blá, blá.
Pensei comigo:
De que adiantaria buzinar se trafegava na contramão, e de que adiantaria eu ouvir a buzina, meus ouvidos não iriam frear, não tão de perto.
Juro que tive vontade de rir da situação. Que coisa idiota de se dizer, de ser ouvida.
Depois de dois meses, recebi alta do hospital, não ficaram sequelas, tudo estava funcionando perfeitamente. De volta em casa, o pássaro me despertou pontualmente às seis...
No trabalho toda a barulheira de novo, tudo sem exceção. Foi quando Cláudia estranhou minha falta de concentração e uma singela ruga na testa e perguntou:
_ Você está bem?
Levei um tempo para perceber que havia perdido não só as minhas cobaias, mas aquele universo inteiro que me era novo, até que finalmente respondi.
_ Agora entendo o que a frase “Há males que vem para o bem” significa.