"O texto simplifica meu eu complexo, ora é aliado, ora me faz refém".- Hellen Cortezolli

segunda-feira, dezembro 7

Ninguém sabia



(Conto...por H. Cortezolli)

Tinha cabelo desgrenhado, com um franjão que cobria os olhos, comia sucrilhos no café.
Usava uns tênis all star surrado, que ficava jogado pelo quarto junto com as pilhas de roupas sujas, revistas de mulher pelada... Tinha uma parede pichada, de lembranças dos amigos mortos...
Não usava celular, pra não ser encontrado, tinha um ateliê na rua principal, na casa velha que era de seu avô.
Chamava o pai de senhor e a mãe de vizinha... Seu irmão gêmeo morreu atropelado. Nunca mais andou de bicicleta.
Só tinha olhos para menina mais feia da escola.
Ela usava óculos, uma trança até a bunda, não falava com ninguém. Ele sonhava com ela todas as noites, pensando em tirar os óculos e aquelas roupas sem graça e descobrir uma mulher linda. Com pele suave e perfume de rosas. Acordava com a cama molhada.
Ele a ignorava, fingia que ignorava durante o dia, porque ela não o via mesmo.
A seguia todos os dias depois da aula, já sabia onde morava.  Sentava na esquina e esperava ela entrar no prédio. Do outro lado da rua ele via as luzes do apartamento ser ligadas, ela abria as cortinas e sumia.
Todos os dias, durante três anos. Era essa a rotina de Felipe.
Era o momento mais sagrado.
Giovana era o nome dela. Ele sabia desde o segundo dia que a viu. Invadiu a sala dos professores, fez uma cópia da chamada, conferiu os lugares marcados, entrou na sala errada; De propósito, tudo para vê-la de novo e lá estava ela. Sentada na última cadeira perto da janela.
Tudo nela era estranho, tinha uma aura negra. Não deixava ninguém se aproximar, lia todos os livros que encontrava, escrevia o tempo todo, num caderninho que parecia um diário, mas tinha uma capa preta de couro.
Esse mistério em volta dela, que fez ele se apaixonar.
Seus poucos amigos não sabiam.
Ele pintava camisetas, com desenhos abstratos. Ganhava uma grana boa, desde os 14 anos.
Chegou a época do quartel, ele disse que iria para faculdade, foi liberado. Não serviu!
Saiu da cidade para fazer artes plásticas. Ficou obcecado pela menina estranha... Foram mais cinco anos.
Na faculdade comeu um monte de vadias, das mais corpulentas às de corpo de tábua. Nunca tirou a garota estranha da cabeça... Nunca se envolveu de verdade. Pensava nela enquanto possuía as outras.
Voltou para cidade não tão granado, mas dava pra ter o básico, um canto para dormir sossegado, um carro para fugir da chuva, todo peliculado. E parou bem em frente ao prédio, aquele onde ela morava. Pensou:
Será que ainda mora ali?
Desceu do carro, foi até a farmácia em frente, cantou a balconista. Ajeitou o cabelo, a camisa azul e o jeans surrado, continuava com os all star velho, para dar sorte.
Pelo espelho da farmácia viu uma mulher incrivelmente linda. Num vestido que arrastava no chão, carregando uma caixa de papelão, parecia pesado...
Se despediu apressado da bobinha da farmácia, e atravessou a rua, enquanto ela ainda está lá, tentando entrar.
Se ofereceu para ajudar e quando ela o encarou...
(É ela!).
Ficou sem voz, não conseguiu pensar no que dizer. Não disse mais nada.
Ela olhou por alguns segundos e entregou a caixa a ele, se virou e abriu o portão do prédio. Fez sinal de leve com a cabeça para ele entrar. Caminharam até o elevador, apertou o botão do quinto andar. Eles entram, e aquele silêncio interminável... Capaz de fazê-lo ouvir as batidas do próprio coração, acelerado...
Entraram no apartamento 503.
Com uma sala ampla, cortinas brancas de renda, na janela, como as que ele a via abrir antes de sumir pela casa...
Ela entrou foi até o outro cômodo, ele sentou no sofá e deixou a caixa do lado.
Deu uma boa olhada em volta.
Sofá cor de vinho. Tapete alto bege, pelos cantos estátuas de gesso, na parede um quadro enorme dela.    Com um vestido esvoaçante branco, quase transparente, cabelos soltos que cobriam seu corpo, os manteve compridos.
Afinal se passaram 5 anos, podia tê-los cortado, ainda bem que ficaram assim...
Ela volta e trás um copo d’água numa bandeja de prata. Ele aceita, bebe olhando para ela. Ela também não desvia o olhar...
Ele não sabe o que fazer, não lembrava mais como havia chegado até ali, não disseram nada. Só se olharam... Muito.
Ele se levanta e faz menção de ir embora e ela segura sua mão, leva até aquele rosto pálido e finalmente diz alguma coisa:
- Por que demorou tanto?
- Eu estava por aí.
- Vai ficar?
- Não sei dizer.
- Fica.
Naquela noite fizeram amor.
Depois de tantas mulheres que ele havia tido, aventuras e sacanagens. Era a primeira vez que ele fazia amor e sentia tanto prazer que parecia doer.
Era amor de moleque, sonhava com ela, a feia, esquisita, que lhe fazia companhia nos sonhos mais íntimos...
Estavam ali entregues, nos lençóis de cetim brancos, da cama dela. Naquele apartamento enorme, só os dois.
E não sabia quase nada, o que havia feito esses anos todos. Foi então que abraçados depois do auge... Ela disse:
- Quis morrer muitas vezes, hoje seria a última tentativa. E rezei para que o homem da minha vida batesse na minha porta hoje. No fundo eu sabia que seria impossível, mas tinha esperança. Então você voltou. Não tive dúvidas. Não posso deixá-lo partir nunca mais.
Ele olha pra ela e pergunta, e meio confuso, com medo da resposta, mas precisa saber:
- Você sabe quem eu sou?
- O único que me amou desde o colégio, que me seguia.
- Você sabia?
- Sempre soube, eu o sentia a cada esquina. Via seu reflexo nas vitrines das lojas. No início sentia medo.   Mas, quando você saiu da cidade, eu me perdi. Os livros não me faziam mais companhia e perdi minha motivação para escrever.
Ficaram juntos por cinco meses. Os mais felizes de sua vida. Ele ainda pintava, ganhou mais dinheiro naquele período do que nos anos que esteve fora. Ela voltou a escrever. A casa tinha cheiro de jasmim.
Foi um sonho. Até o outono... Giovana saiu de carro e sofreu um acidente. Felipe ficou sabendo enquanto fazia compras no supermercado. Saiu desconsolado sem saber o que fazer, correu para o hospital. Chegou lá, viu Giovana na cama, ela estava viva, inteira.
Sentiu um alívio e correu para os braços dela. Giovana quando o viu, não disse nada, olhou para o médico e perguntou com a voz embargada, querendo chorar:
- Quem é esse homem e porque está me abraçando?
Felipe aterrorizado percebeu que a mulher que tantos anos mantivera em sua mente não o reconhecia.
Foi o acidente doutor?
- Não, você não sabia, efeito colateral da medicação...
Giovana sofre de esquizofrenia.

4 comentários:

  1. Preciso conversar mais com você.... Adoro ler o que escreve e os contos que colocas no blog, pode me dizer da onde são? de quem são? Se forem seus pode me dar todos eles? Para quem saber abrir minha mente... e quem sabe começar a pensar de outra forma... rsrsrsr

    Preciso de refência de livros se puder me indicar alguns agradeço....

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  2. Hahaha! Que bom que tenhas gostado, os contos são meus mesmo. Essas coisas têm que ter saído dessa minha cuca perturbada.
    Livros? Assim que me organizar te recomendo alguns, mas o bom mesmo é ler de tudo, o que der vontade. Bj

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  3. Eu adoro, cara.
    É o que empre tive noção de "gosto meu", mas nunca tive... um escape pra idéia.
    Odeio ler finais felizes.

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  4. Gostei do texto.Queria que o felipe cometesse suicidio para ficar do jeito que eu gosto.Ha Ha. Esse é o primeiro texto que eu comento aqui, antes eu tinha vergonha de comentar por causa do cunho pessoal dos outros posts. Ai, poisé. Eu tenho um blog também(www.mortoseferidos.blogspot.com). Tem contos e coisas assim. Ai, é isso.

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