Vanda vivia sozinha num apartamento no sexto andar. Tinha vinte e poucos anos. Havia se mudado não fazia nem um mês.
Gostava de todas as cores, desde que todas elas fossem “pretas”.
Era pálida, com um semblante de morta.
Os vizinhos desconheciam Vanda, mas gostavam de admirá-la. Ela chegava do trabalho, ascendia as luzes, limpava todos os cantos, uma sala pequena com dois ambientes, bem em frente à janela.
Na primeira porta a direita o quarto, com cama de casal e um guarda-roupa, uma TV e um aparelho de som. Na porta a esquerda a cozinha que dava acesso a uma varanda pequena.
Daquela altura dava para ver parte da cidade, e a noite só eram as luzes...
Lá embaixo tinha uma casa grande, com piscina. E a observavam de lá. Vanda se debruçava no parapeito, já que não tinha sacada. Olhava por horas para o nada, sonhava, sonhava. Quando se dava conta, olhava para baixo e quando avistava olhares curiosos, sumia.
Não estava tão quente, mas à noite ventava um pouco, as cortinas voavam, parecia sombrio... Ouvia som muito alto, uma música triste, que ninguém sabia, ora mudava, pra outra mais conhecida, um cd com voz feminina, que de tanto ouvir, o casal gay do sétimo andar, comprou igual. Quando a música não vinha da casa de Vanda, era da deles.
Vanda falava pouco, era muito séria. Delineava os olhos, como estratégia para manter os olhos dos outros nos seus. Ninguém percebia assim suas mãos trêmulas.
Não tinha namorado, havia cicatrizes em sua alma bem recentes, de dois anos antes. Que a deixaram mais amarga. E ela se armou. De subterfúgios, para não sentir mais dor.
Mas, mesmo assim, Vanda tinha chama para os homens, não precisava fazer nada, às vezes acontecia... Eles desejavam Vanda, sem ela saber. Um dia lhe diziam... Até aquele senhor sem graça, que trabalhava com ela, lhe dava bom dia e mais nada, tinha uma esposa muito brava, a quem ela tratava bem, só com Vanda ela falava.
Depois de um ano, ele se aproximou do balcão e do nada disse:
- Ontem sonhei com você.
Sem levantar a cabeça, concentrada em suas anotações, Vanda perguntou:
- Ah, é? E o que o senhor sonhou?
- Que você estava de lingerie vermelha.
Vanda levou um susto, o fitou rapidamente e ele completou:
- Foi quando acordei com minha mulher me esmurrando para eu levantar.
Vanda não falou nada, só ficou olhando aquele senhor se afastar.
Sentiu vergonha e buscou na memória o que havia feito de errado pra despertar um sentimento assim, naquele senhor tão calado.
E foi para casa, não pensou mais nisso. Deixou para lá...
Ela sentia uma solidão só dela, às vezes chorava, os vizinhos pensavam que Vanda não iria durar muito... Achavam que dores da alma fazem padecer rapidamente. Vanda não se abria com ninguém, não tinha amigas, não sentia falta.
Vanda não era calminha, não entrava numa briga, mas não fugia de nenhuma delas. Encarava quem quer que fosse e não perdia sua razão. Vanda não tinha mais medo, exceto de emoção.
Na cozinha toda branca, pequena e arrumadinha, Vanda fazia comida de microondas, deixava tudo pronto para o dia seguinte, chegava na hora do almoço, requentava, dormia seminua para não ter trabalho de tirar nada, eram só quinze minutos. Acordava com o despertador do celular, se banhava em água quente, se vestia e voltava para o trabalho, há uns dez minutos dali.
Depois tudo de novo... no outro dia e, no outro...
Vanda se apaixonava, mas não era por ninguém que a amasse, era pelo impossível, por alguém que a enxergasse, ela só não sabia das outras pessoas, não interessava. Narcisista, incoerente, dentre tantas outras coisas, essa era Vanda.
Ouvia música estranha, não escrevia há anos. Conversava com os pais ao telefone todos os dias, pelo menos uma vez, e se queixava da vida... E, de saudades.
Vanda emagrecia, já era magra, agora cadavérica.
Mais um havia se declarado a ela, e lhe roubado um beijo, então Vanda fugiu, entregou o apartamento e mudou de cidade.
Mudou de estilo, ficou mais agressiva, estudou a arte de afastar pessoas, falava sem parar, falava o que pensava. Passou a usar colorido, e usar um cabelo diferente, deixou bem comprido...
Dispensou mais rapazes, até que um persistiu, persistiu. Vanda cedeu... Ficou com ele, o que não impediu de despertar outros mais... Não fazia por mal.
Lembrou que um dia amou Shakespeare, e desejou quimera.
E ela pensou em recitar Vinícius de Moraes...
Pensou em outro rapaz;
Pensou tão profundamente que descobriu,
O quanto doía,
E doía demais...
Vanda hoje quer fugir novamente, só não sabe para onde.
E se calava só, e só calava.
Olhava para o mundo e fugia.
O medo a fez perversa, a encurralava;
Tinha sentimento profundo, mas omitia.
A voz embargava, nó que a deixava sem ar
Se alimentava de dor, sem mastigar, engolia;
Com a verdade, a maldade reclamava seu lugar,
De olhos marejados e alma pobre pedia...
É suspeita por amar demais,
Tem n’alma uma chama pesada
Ataca antes e defende mais
Antes de dormir sofre calada.
Ignora tudo, mesmo culpada
Mantém um desejo de voltar atrás...
Num tempo que sonhava ser amada.
E se calava só, e só, calava.
Sentia culpa, lhe faltava paz...
Vanda! Detrás dos teus olhos tens uma alma levada.
(Um conto e outros pontos por H. Cortezolli)
Vanda é um fantasma.
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